
Alfabetização e Letramento
No início da década de 1980, os estudos acerca da psicogênese da língua escrita trouxeram aos educadores o entendimento de que a alfabetização, longe de ser a apropriação de um código, envolve um complexo processo de elaboração de hipóteses a respeito da representação linguística; os anos que seguiram, com a emergência dos estudos sobre o letramento, foram igualmente férteis na compreensão da dimensão sociocultural da língua escrita e seu aprendizado. Em estreita sintonia, ambos os movimentos, nas suas vertentes teórico-conceituais, romperam definitivamente com a segregação dicotômica entre o sujeito que aprende e o professor que ensina. Romperam também com o reducionismo que delimitava a sala de aula como o único espaço de aprendizagem.
Reforçando os princípios antes propalados por Vygotsky e Piaget, a aprendizagem se processa em uma relação interativa entre o sujeito e a cultura em que vive. Isso quer dizer que, ao lado dos processos cognitivos de elaboração absolutamente pessoal (ninguém aprende pelo outro), há um contexto que não só fornece informações específicas ao aprendiz, como também motiva, dá sentido e “concretude” ao aprendizado, e ainda condiciona suas possibilidades efetivas de aplicação e uso nas situações vividas. Entre o homem e os saberes próprios de sua cultura, há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da aprendizagem (não só o professor, nem só a escola, embora estes sejam agentes privilegiados pela sistemática pedagogicamente planejada, objetivos e intencionalidade assumida).
A concepção de letramento contribuiu para redimensionar a compreensão que hoje temos sobre:
a) as dimensões do aprender a ler e a escrever;
b) o desafio de ensinar a ler e a escrever;
c) o significado do aprender a ler e a escrever;
d) o quadro da sociedade leitora no Brasil;
e) as próprias perspectivas das pesquisas sobre letramento.
As dimensões do aprender a ler e a escrever
Durante muito tempo a alfabetização foi entendida como mera sistematização do B+A = BA, isto é, como a aquisição de um código fundado na relação entre fonemas e grafemas. Em uma sociedade constituída em grande parte por analfabetos e marcada por reduzidas práticas de leitura e escrita, a simples consciência fonológica que permitia aos sujeitos associar sons e letras para produzir/ interpretar palavras (ou frases curtas) parecia ser suficiente para diferenciar o alfabetizado do analfabeto.
Com o tempo, a superação do analfabetismo em massa e a crescente complexidade de nossas sociedades fazem surgir maiores e mais variadas práticas de uso da língua escrita. Tão fortes são os apelos que o mundo letrado exerce sobre as pessoas, que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar o código da leitura. Seguindo a mesma trajetória dos países desenvolvidos, o final do século XX impôs a praticamente todos os povos a exigência da língua escrita não mais como meta de conhecimento desejável, mas como verdadeira condição para a sobrevivência e a conquista da cidadania. Foi no contexto das grandes transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas que o termo letramento surgiu, ampliando o sentido do que tradicionalmente se conhecia por “alfabetização”.
Hoje, tão importante quanto conhecer o funcionamento do sistema de escrita é poder se engajar em práticas sociais letradas, respondendo aos inevitáveis apelos de uma cultura grafocêntrica.
Mais do que expor a oposição entre os conceitos de “alfabetização” e “letramento”, Magda Soares (In: Colello, 2004: 10910) valoriza o impacto qualitativo que este conjunto de práticas sociais representa para o sujeito, extrapolando a dimensão técnica e instrumental do puro domínio do sistema de escrita: “alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita. Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos.”
Por isso, aprender a ler e a escrever implica não apenas o conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de associá-las), mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um determinado contexto cultural.
O desafio de ensinar a ler e a escrever
Na análise da questão em como conciliar duas vertentes da língua em um único sistema de ensino, destacaremos dois embates: o conceitual e o ideológico.
1) O embate conceitual
Tendo em vista a independência e a interdependência entre alfabetização e letramento (processos paralelos, simultâneos ou não, mas que indiscutivelmente se complementam), alguns autores contestam a distinção de ambos os conceitos, defendendo um único e indissociável processo de aprendizagem. Em uma concepção progressista de “alfabetização”, o processo de alfabetização incorpora a experiência do letramento e este não passa de uma redundância em função de como o ensino da língua escrita já é concebido.
É preciso conhecer o mérito teórico e conceitual de ambos os termos. Balizando o movimento pendular das propostas pedagógicas (não raro transformadas em modismos banais e mal assimiladas), a compreensão que hoje temos do fenômeno do letramento presta-se tanto para banir definitivamente as práticas mecânicas de ensino instrumental, como para se repensar na especificidade da alfabetização. Na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua escrita: o alfabetizar letrando.
2) O embate ideológico
Contagiada pela concepção de que o uso da escrita só é legítimo se atrelada ao padrão elitista da “norma culta” e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão de um inflexível funcionamento linguístico, a escola tradicional sempre pautou o ensino pela progressão ordenada de conhecimento: aprender a falar a língua dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para, um dia (talvez nunca), fazer uso desse sistema em formas de manifestação previsíveis e valorizadas pela sociedade. Em síntese, uma prática reducionista pelo viés linguístico, e autoritária pelo significado político; uma metodologia etnocêntrica que, pela desconsideração do aluno, mais se presta a alimentar o quadro do fracasso escolar.
O significado do aprender a ler
Ao permitir que as pessoas cultivem os hábitos de leitura e escrita e respondam aos apelos da cultura grafocêntrica, podendo inserir-se criticamente na sociedade, a aprendizagem da língua escrita deixa de ser uma questão estritamente pedagógica para alçar-se à esfera política, evidentemente pelo que representa o investimento na formação humana.
A história do ensino no Brasil, a despeito de eventuais boas intenções e das “ilhas de excelência”, tem deixado rastros de um índice sempre inaceitável de analfabetismo agravado pelo quadro nacional de baixo letramento.
O quadro da sociedade leitora no Brasil
Do mesmo modo como transformaram as concepções de língua escrita, redimensionaram as diretrizes para a alfabetização e ampliaram a reflexão sobre o significado dessa aprendizagem, os estudos sobre o letramento obrigam-nos a reconfigurar o quadro da sociedade leitora no Brasil.
Ao lado do índice nacional de 16.295.000 analfabetos no país (IBGE, 2003), importa considerar um contingente de indivíduos que, embora formalmente alfabetizados, são incapazes de ler textos longos, localizar ou relacionar suas informações.
Os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever
Se descartássemos as explicações mais simplistas que culpam o aluno pelo fracasso escolar; se admitíssemos que os chamados “problemas de aprendizagem” se explicam muito mais pelas relações estabelecidas na dinâmica da vida estudantil; se o desafio do ensino pudesse ser enfrentado a partir da necessidade de compreender o aluno para com ele estabelecer uma relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento; se as práticas pedagógicas pudessem transformar as iniciativas meramente instrucionais em intervenções educativas; se tudo isso ocorresse, talvez fosse possível compreender melhor o significado e a verdadeira extensão da não aprendizagem e do quadro de analfabetismo no Brasil.
Do ponto de vista dos alunos, o repúdio à tarefa, à escola e muito provavelmente à escrita foi uma reação contra a implícita proposta de fazer parte de um mundo ao qual nem todos podem ter livre acesso: o mundo da medicina, da possibilidade de ser acompanhado por um médico e da compra de remédios.
A desconsideração dos significados implícitos do processo de alfabetização – o longo e difícil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, a reação dele em face da artificialidade das práticas pedagógicas e a negação do mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz de mediar as tensões, negociar significados e construir novos contextos de inserção social.
Perspectivas das pesquisas sobre letramento
Embora o termo letramento remeta a uma dimensão complexa e plural das práticas sociais de uso da escrita, a apreensão de uma dada realidade, seja ela de um determinado grupo social ou de um campo específico de conhecimento motivou a emergência de inúmeros estudos a respeito de suas especificidades. É por isso que, nos meios educacionais e acadêmicos, vemos surgir a referência no plural “letramentos”.
Embora ainda não dicionarizado, o termo “letramento” foi usado pela 1ª vez por Mary Kato, em 1986, na obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística (São Paulo, Ática). Dois anos depois, passa a representar um referencial no discurso da educação, ao ser definido por Tfouni em Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso (São Paulo, Pontes) e retomado em publicações posteriores.
No embate conceitual, a evidência desse paralelismo, é possível porque podemos ter casos de pessoas letradas e não alfabetizadas (indivíduos que, mesmo incapazes de ler e escrever, compreendem os papéis sociais da escrita, distinguem gêneros ou reconhecem as diferenças entre a língua escrita e a oralidade) ou pessoas alfabetizadas e pouco letradas (aqueles que, mesmo dominando o sistema da escrita, pouco vislumbram suas possibilidades de uso).
Em uma sociedade como a nossa, o mais comum é que a alfabetização seja desencadeada por eventos de letramento, tais como ouvir histórias, observar cartazes, conviver com práticas de troca de correspondência, etc. No entanto, é possível que indivíduos com baixo nível de letramento (não raro membros de comunidades analfabetas ou provenientes de meios com reduzidas práticas de leitura e escrita) só tenham a oportunidade de vivenciar tais eventos na ocasião de ingresso na escola, com o início do processo formal de alfabetização.
Métodos Sintéticos: da soletração à consciência fonológica
Juntando as letras: soletração
A Carta do ABC (sem indicação de autor ou data): o livrinho apresenta primeiro os alfabetos de letras maiúsculas e minúsculas de imprensa e de letras cursivas. A ideia é ensinar os três tipos mais comuns de sílabas existentes em português, como consoante-vogal (ba, na, ma ),vogal-consoante (al, ar, na ), consoante-consoante-vogal (fla, bla, tra ).
O objetivo maior da soletração é ensinar a combinatória de letras e sons, partindo de unidades simples, as letras, o professor tenta mostrar que essas, quando se juntam, representam sons, as sílabas, que por sua vez formam palavras.
O método baseia-se na associação de estímulos visuais e auditivos, valendo-se apenas da memorização como recurso didático – o nome da letra é associado à forma visual, as sílabas são aprendidas de cor, e com elas se formam palavras isoladas fora do contexto.
Quanto daria por um daqueles duros bancos onde me sentava, nas mãos a Carta do ABC, a cartilha de soletrar, separar vogais e consoantes. Repassar folha por folha, gaguejando as lições num aprendizado demorado e tardio. Afinal vencer e mudar de livro.
Excerto do poema Voltei de Cora Coralina (2001), poeta goiana, nascida em 1889.
Ba-be-bi-bo-bu: silabação
O método tem os mesmos defeitos da soletração: ênfase excessiva nos mecanismos de codificação e decodificação, apelo excessivo à memória e não à compreensão, pouca capacidade de motivar os alunos para a leitura e a escrita.
Cartilha da Infância (Thomaz Galhardo, 1979): depois de mostrar as vogais e os ditongos, apresenta as sílabas va-ve-vi-vo-vu, embaralhando-as nas duas linhas seguintes. Seguem-se palavras formadas de três letras (vai-viu-vou) e finalmente onze vocábulos contendo as sílabas estudadas; cada lição se completa com algumas frases sem ligação entre si, escritas sem a maiúscula na palavra inicial e sem pontuação: “vovó viu a ave”, “a ave vive e voa”, “vovô vê o ovo” e outras do gênero.
A ordem de apresentação: primeiro, as cinco letras que representam as vogais, depois os ditongos, em seguida as sílabas formadas com as letras v, p, b, f, d, t, l, j, m, n. As chamadas “dificuldades ortográficas” aparecem do meio para o fim da cartilha, incluindo os dígrafos, as sílabas travadas (terminadas por consoantes), as letras g, c, z, s, e x.
Métodos fônicos
Ensina-se o aluno a produzir oralmente os sons representados pelas letras e a uni-los para formar as palavras. Parte-se de palavras curtas, formadas por apenas dois sons representados por duas letras, para depois estudar de três letras ou mais. A ênfase é ensinar a decodificar os sons da língua, na leitura, e a codificá-la, na escrita.
Atualmente, os métodos fônicos tendem a apresentar pequenas frases, a partir da 2ª ou 3ª folha, para que os alunos desenvolvam gradativamente habilidades de leitura mais complexas.
Este recurso visa a habituar o aluno a extrair o conteúdo significativo da palavra lida e superar uma deficiência ainda comum no método (Rizzo apud Carvalho, 2005: 25).
Método da Abelhinha (Alzira S. Brasil, Lúcia Marques Pinheiro e Risoleta Ferreira Cardoso criaram o método em 1965): apresenta o método misto do tipo fonético.
Os sons são apresentados como "barulhos" que ocorrem, o mesmo acontecendo com a reunião de dois sons em sílabas. Da reunião de dois sons, a criança passa a três, e vai lendo palavras cada vez mais extensas; depois expressões, sentenças e historinhas.
Duas recomendações das autoras: não dizer o nome das letras, pois seria cair na soletração; e não fazer a união de fonemas com todas as vogais, pois seria a silabação, prejudicando a leitura mais tarde.
A personagem abelhinha, que dá nome ao método, tem o corpo em forma de um a (em letra cursiva) e apresenta o som /aaaaaaa/ (a vogal é prolongada para facilitar o reconhecimento); a letra i é representada pelo tronco de um índio, outro personagem de histórias e assim por diante.
Os personagens são desenhados para sugerir o todo ou partes das formas estilizadas das letras.
Há portanto uma associação de três elementos – personagem – forma da letra – som da letra (fonema). A alfabetização se faz por síntese ou fusão dos sons para formar a palavra.
A Casinha Feliz (criado pela pedagoga Iracema Meireles na década de 1950): acredita na aprendizagem por meio do jogo, propondo que a sala de aula fosse um espaço para a criatividade e a livre expressão das crianças.
Método: associar a forma da letra a um personagem, o qual, por sua vez, representava determinado som. O essencial é que conduza à figura-fonema capaz de fazer sempre, se for consoante, o imprescindível barulhinho. Tudo mais é jogo, é dramatização, atividade criadora.
Cuidados a considerar na aplicação dos métodos fônicos
Os dois métodos apresentados propõem associações visuais e auditivas com a forma e os sons das letras e têm o mérito de recomendar a utilização e recursos expressivos de voz, gesticulação, desenho, teatro, etc. para despertar o interesse infantil. Ambos giram em torno de histórias contadas oralmente e o material escrito é rigorosamente controlado para apresentar apenas as palavras cuja decodificação já foi, ou está sendo, ensinada.
Um aspecto discutível dos métodos é que as histórias dos manuais, criadas com o objetivo de apresentar as relações letra-som numa determinada seqüência, são muito artificiais. É preciso professores experientes, com bons recursos narrativos, para dar vida a histórias didáticas, em que os sons ora são associados à forma das letras, ora aos nomes dos personagens, ora a um “barulhinho” produzido por eles.
Na aplicação dos métodos fônicos, a maior dificuldade técnica é tentar articular os sons das consoantes isoladas, pois de fato elas só ganham sons quando estão acompanhadas de uma vogal. Existem algumas consoantes, como o /f/ e o /v/, que podem ser prolongadas com certa facilidade, dando a impressão que se fundem com as vogais que as acompanham. Mas não é o caso da maioria das outras que só são ouvidas claramente quando acompanhadas das vogais.
Consciência fonológica: é a capacidade de distinguir e manipular os sons constitutivos da língua e consiste na capacidade para focalizar os sons da fala, independentemente do sentido.
Para reconhecer o grau de consciência fonológica da criança, alguns indicadores são a habilidade de identificar o número de sílabas das palavras e de reconhecer rimas e aliterações (sílabas que se repetem no início de uma série de palavras). Cada palavra falada é formada por uma série de fonemas, representados na escrita pelas letras do alfabeto e a percepção destes é desenvolvida no processo de alfabetização.