
Alfabetizando
Quem se responsabiliza pelas crianças que estão na escola e não estão aprendendo?
Vivemos um momento importante na educação brasileira, porque de mudança, e não sem tempo. Hoje, os esforços de todos os bem-intencionados organizam-se da maneira que podem para combater uma cultura que no último meio século dizimou milhões de crianças brasileiras: a cultura da repetência. Mas enfrentamos, como em todos os grandes movimentos de mudança, armadilhas que, se não forem percebidas, atrasarão o avanço que estamos tentando fazer em direção a uma educação eficiente e de boa qualidade para todos.
Uma dessas armadilhas consiste em acreditar que, engajados na nova e boa palavra de ordem – “o aluno não deve ser reprovado”, os professores passarão a aprová-lo, enviando-o para a série seguinte munido de todas as competências necessárias para cursá-la com sucesso. Como se até então não o fizessem simplesmente por descaso com seu próprio trabalho, ou por acreditarem que professor bom é o que reprova.
Essa situação costuma ser mais dramática no contexto das primeiras séries do Ensino Fundamental, que é quando são tomadas decisões de importância vital: se o aluno aprende a ler e a escrever nos dois primeiros anos e será promovido, ou se ficará retido ali, ano após ano, até desistir da escola; se, mesmo sem aprender, será promovido e engrossará o número dos que, cada vez mais, chegam analfabetos à 4ª série; se, mesmo precariamente alfabetizados e sem nenhuma competência para compreender textos mais complexos, classes inteiras de 4ª série iniciarão o segmento da 5ª à 8ª séries para fracassar diante da necessidade de aprender por meio da leitura.
Vemos, hoje, a enorme dificuldade que os professores têm de verificar o que os alunos já sabem e o que não sabem. Há alunos que produzem escritas silábico-alfabéticas e alfabéticas na 1ª série, no início do ano, e que poderiam perfeitamente acompanhar uma 2ª série, pois podem ler e escrever, ainda que com precariedade, mas ficam retidos porque os professores não tiveram condições de avaliá-los adequadamente e acabaram utilizando indicadores como “letra bonita” ou “caderno bem-feito”.
Quando o professor trabalha com esse tipo de indicador, até mesmo avanços na aprendizagem acabam prejudicando o aluno. Por exemplo, quando o aluno aprende a ler, é comum que ele comece a “errar” na cópia. Isto é, deixa de copiar letra por letra e começa a ler e a escrever grandes blocos de palavras, em geral unidades de sentido, o que faz com que cometa erros de ortografia ou escreva palavras grudadas. Tal fato, que é na verdade indicador de progresso, acaba sendo interpretado como regressão, pois o professor não tem clara a diferença entre copiar e escrever. Na nossa cultura, a produção de multi-repetentes em massa decorre da visão de que o aluno é sempre responsável por sua aprendizagem. Essa maneira de olhar para a questão do fracasso escolar, embora não produza diretamente a repetência maciça, é certamente responsável pela aceitação institucional do fenômeno, por sua naturalização. Tanto que, quando se trata de crianças de apenas sete anos, consideradas jovens demais para tanta responsabilidade, a suposta falta de empenho é transferida para a família.
A despeito de todas as boas intenções, o atual esforço de transformação da educação brasileira será sugado pelo buraco negro da nossa incapacidade de alfabetizar os alunos no início da escolaridade obrigatória (na verdade, o processo de alfabetização começa bem antes e deveria estar presente na Educação Infantil, como costuma acontecer com os filhos da elite).
Prova disso é que, para desespero dos que sabem para onde isso sempre nos tem levado, estamos assistindo à transformação da generosa ideia de progressão continuada nessa perversão que está tornando-se conhecida como “promoção automática”.
Atualmente, com a progressão continuada, as classes continuam divididas entre “os que vão” e “os que não vão”, mas com uma pequena diferença: antes eram os que “vão aprender e passar de ano e os que não vão aprender nem passar de ano” e agora todos “passam de ano”, porém só alguns “vão” aprender.
Receita de alfabetização
Pegue uma criança de 6 anos e lavea bem. Enxágüe-a com cuidado, enrole-a num uniforme e coloque-a sentadinha na sala de aula. Nas oito primeiras semanas, alimente-a com exercícios de prontidão. Na 9ª semana ponha uma cartilha nas mãos da criança. Tome cuidado para que ela não se contamine no contato com livros, jornais, revistas e outros perigosos materiais impressos.
Abra a boca da criança e faça com que engula as vogais. Quando tiver digerido as vogais, mande-a mastigar, uma a uma, as palavras da cartilha. Cada palavra deve ser mastigada, no mínimo, 60 vezes, como na alimentação macrobiótica. Se houver dificuldade para engolir, separe as palavras em pedacinhos.
Mantenha a criança em banho-maria durante quatro meses, fazendo exercícios de cópia.
Em seguida, faça com que a criança engula algumas frases inteiras. Mexa com cuidado para não embolar.
Ao fim do oitavo mês, espete a criança com um palito, ou melhor, aplique uma prova de leitura e verifique se ela devolve pelo menos 70% das palavras e frases engolidas. Se isso acontecer, considere a criança alfabetizada. Enrole-a num bonito papel de presente e despache-a para a série seguinte.
Se a criança não devolver o que lhe foi dado para engolir, recomece a receita desde o início, isto é, volte aos exercícios de prontidão. Repita a receita tantas vezes forem necessárias.
Ao fim de três anos, embrulhe a criança em papel pardo e coloque um rótulo: aluno renitente.
Alfabetização sem receita
Pegue uma criança de 6 anos ou mais, no estado em que estiver, suja ou limpa, e coloquea numa sala de aula onde existam muitas coisas escritas para olhar e examinar. Servem jornais, livros, revistas, embalagens, propaganda eleitoral, latas vazias, caixas de sabão, sacolas de supermercado, enfim, vários tipos de materiais que estiverem ao seu alcance.
Converse com a turma, troque ideias sobre quem são vocês e as coisas de que gostam e não gostam. Escreva no quadro algumas frases que foram ditas e leia-as em voz alta. Peça às crianças que olhem os escritos que existem por aí, nas lojas, nos ônibus, nas ruas, na televisão.
Escreva algumas dessas coisas no quadro e leia-as para a turma.
Deixe as crianças cortarem letras, palavras e frases dos jornais velhos e não esqueça de mandá-las limpar o chão depois, para não criar problema na escola.
Todos os dias leia em voz alta alguma coisa interessante: historinha, poesia, notícia de jornal, anedota, letra de música, adivinhações.
Mostre alguns tipos de coisas escritas que elas talvez não conheçam: um catálogo telefônico, um dicionário, um telegrama, uma carta, um bilhete, um livro de receitas de cozinha.
Desafie as crianças a pensar sobre a escrita e pense você também. Quando elas estiverem escrevendo, deixe-as perguntar ou pedir ajuda ao colega. Não se apavore se uma criança estiver comendo letra: até hoje não houve caso de indigestão alfabética. Acalme a diretora se ela estiver alarmada.
Invente sua própria cartilha. Use sua capacidade de observação para verificar o que funciona, qual o modo de ensinar que dá certo na sua turma. Leia e estude você também.
Obs.: Os textos “Receita de Alfabetização” e “Alfabetização sem receita” têm circulado em cursos para professores, às vezes, sem indicação da autoria. Foram publicados: no Boletim Informativo n.1, da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, jul/1989; pelo Boletim Carpe Diem, Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais de Educação, Prefeitura de Belo Horizonte, ano IV, n.4, janfev/1994.
Letramento
No início da década de 1980, os estudos acerca da psicogênese da língua escrita trouxeram aos educadores o entendimento de que a alfabetização, longe de ser a apropriação de um código, envolve um complexo processo de elaboração de hipóteses a respeito da representação linguística; os anos que seguiram, com a emergência dos estudos sobre o letramento, foram igualmente férteis na compreensão da dimensão sociocultural da língua escrita e seu aprendizado. Em estreita sintonia, ambos os movimentos, nas suas vertentes teórico-conceituais, romperam definitivamente com a segregação dicotômica entre o sujeito que aprende e o professor que ensina. Romperam também com o reducionismo que delimitava a sala de aula como o único espaço de aprendizagem.
Reforçando os princípios antes propalados por Vygotsky e Piaget, a aprendizagem se processa em uma relação interativa entre o sujeito e a cultura em que vive. Isso quer dizer que, ao lado dos processos cognitivos de elaboração absolutamente pessoal (ninguém aprende pelo outro), há um contexto que não só fornece informações específicas ao aprendiz, como também motiva, dá sentido e “concretude” ao aprendizado, e ainda condiciona suas possibilidades efetivas de aplicação e uso nas situações vividas. Entre o homem e os saberes próprios de sua cultura, há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da aprendizagem (não só o professor, nem só a escola, embora estes sejam agentes privilegiados pela sistemática pedagogicamente planejada, objetivos e intencionalidade assumida).
A concepção de letramento contribuiu para redimensionar a compreensão que hoje temos sobre:
a) as dimensões do aprender a ler e a escrever;
b) o desafio de ensinar a ler e a escrever;
c) o significado do aprender a ler e a escrever;
d) o quadro da sociedade leitora no Brasil;
e) as próprias perspectivas das pesquisas sobre letramento.
As dimensões do aprender a ler e a escrever
Durante muito tempo a alfabetização foi entendida como mera sistematização do B+A = BA, isto é, como a aquisição de um código fundado na relação entre fonemas e grafemas. Em uma sociedade constituída em grande parte por analfabetos e marcada por reduzidas práticas de leitura e escrita, a simples consciência fonológica que permitia aos sujeitos associar sons e letras para produzir/ interpretar palavras (ou frases curtas) parecia ser suficiente para diferenciar o alfabetizado do analfabeto.
Com o tempo, a superação do analfabetismo em massa e a crescente complexidade de nossas sociedades fazem surgir maiores e mais variadas práticas de uso da língua escrita. Tão fortes são os apelos que o mundo letrado exerce sobre as pessoas, que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar o código da leitura. Seguindo a mesma trajetória dos países desenvolvidos, o final do século XX impôs a praticamente todos os povos a exigência da língua escrita não mais como meta de conhecimento desejável, mas como verdadeira condição para a sobrevivência e a conquista da cidadania. Foi no contexto das grandes transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas que o termo letramento surgiu, ampliando o sentido do que tradicionalmente se conhecia por “alfabetização”.
Hoje, tão importante quanto conhecer o funcionamento do sistema de escrita é poder se engajar em práticas sociais letradas, respondendo aos inevitáveis apelos de uma cultura grafocêntrica.
Mais do que expor a oposição entre os conceitos de “alfabetização” e “letramento”, Magda Soares (In: Colello, 2004: 10910) valoriza o impacto qualitativo que este conjunto de práticas sociais representa para o sujeito, extrapolando a dimensão técnica e instrumental do puro domínio do sistema de escrita: “alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita. Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos.”
Por isso, aprender a ler e a escrever implica não apenas o conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de associá-las), mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias e legítimas em um determinado contexto cultural.
O desafio de ensinar a ler e a escrever
Na análise da questão em como conciliar duas vertentes da língua em um único sistema de ensino, destacaremos dois embates: o conceitual e o ideológico.
1) O embate conceitual
Tendo em vista a independência e a interdependência entre alfabetização e letramento (processos paralelos, simultâneos ou não, mas que indiscutivelmente se complementam), alguns autores contestam a distinção de ambos os conceitos, defendendo um único e indissociável processo de aprendizagem. Em uma concepção progressista de “alfabetização”, o processo de alfabetização incorpora a experiência do letramento e este não passa de uma redundância em função de como o ensino da língua escrita já é concebido.
É preciso conhecer o mérito teórico e conceitual de ambos os termos. Balizando o movimento pendular das propostas pedagógicas (não raro transformadas em modismos banais e mal assimiladas), a compreensão que hoje temos do fenômeno do letramento presta-se tanto para banir definitivamente as práticas mecânicas de ensino instrumental, como para se repensar na especificidade da alfabetização. Na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua escrita: o alfabetizar letrando.
2) O embate ideológico
Contagiada pela concepção de que o uso da escrita só é legítimo se atrelada ao padrão elitista da “norma culta” e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão de um inflexível funcionamento linguístico, a escola tradicional sempre pautou o ensino pela progressão ordenada de conhecimento: aprender a falar a língua dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para, um dia (talvez nunca), fazer uso desse sistema em formas de manifestação previsíveis e valorizadas pela sociedade. Em síntese, uma prática reducionista pelo viés linguístico, e autoritária pelo significado político; uma metodologia etnocêntrica que, pela desconsideração do aluno, mais se presta a alimentar o quadro do fracasso escolar.
O significado do aprender a ler
Ao permitir que as pessoas cultivem os hábitos de leitura e escrita e respondam aos apelos da cultura grafocêntrica, podendo inserir-se criticamente na sociedade, a aprendizagem da língua escrita deixa de ser uma questão estritamente pedagógica para alçar-se à esfera política, evidentemente pelo que representa o investimento na formação humana.
A história do ensino no Brasil, a despeito de eventuais boas intenções e das “ilhas de excelência”, tem deixado rastros de um índice sempre inaceitável de analfabetismo agravado pelo quadro nacional de baixo letramento.
O quadro da sociedade leitora no Brasil
Do mesmo modo como transformaram as concepções de língua escrita, redimensionaram as diretrizes para a alfabetização e ampliaram a reflexão sobre o significado dessa aprendizagem, os estudos sobre o letramento obrigam-nos a reconfigurar o quadro da sociedade leitora no Brasil.
Ao lado do índice nacional de 16.295.000 analfabetos no país (IBGE, 2003), importa considerar um contingente de indivíduos que, embora formalmente alfabetizados, são incapazes de ler textos longos, localizar ou relacionar suas informações.
Os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever
Se descartássemos as explicações mais simplistas que culpam o aluno pelo fracasso escolar; se admitíssemos que os chamados “problemas de aprendizagem” se explicam muito mais pelas relações estabelecidas na dinâmica da vida estudantil; se o desafio do ensino pudesse ser enfrentado a partir da necessidade de compreender o aluno para com ele estabelecer uma relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento; se as práticas pedagógicas pudessem transformar as iniciativas meramente instrucionais em intervenções educativas; se tudo isso ocorresse, talvez fosse possível compreender melhor o significado e a verdadeira extensão da não aprendizagem e do quadro de analfabetismo no Brasil.
Do ponto de vista dos alunos, o repúdio à tarefa, à escola e muito provavelmente à escrita foi uma reação contra a implícita proposta de fazer parte de um mundo ao qual nem todos podem ter livre acesso: o mundo da medicina, da possibilidade de ser acompanhado por um médico e da compra de remédios.
A desconsideração dos significados implícitos do processo de alfabetização – o longo e difícil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, a reação dele em face da artificialidade das práticas pedagógicas e a negação do mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz de mediar as tensões, negociar significados e construir novos contextos de inserção social.
Perspectivas das pesquisas sobre letramento
Embora o termo letramento remeta a uma dimensão complexa e plural das práticas sociais de uso da escrita, a apreensão de uma dada realidade, seja ela de um determinado grupo social ou de um campo específico de conhecimento motivou a emergência de inúmeros estudos a respeito de suas especificidades. É por isso que, nos meios educacionais e acadêmicos, vemos surgir a referência no plural “letramentos”.
Embora ainda não dicionarizado, o termo “letramento” foi usado pela 1ª vez por Mary Kato, em 1986, na obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística (São Paulo, Ática). Dois anos depois, passa a representar um referencial no discurso da educação, ao ser definido por Tfouni em Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso (São Paulo, Pontes) e retomado em publicações posteriores.
No embate conceitual, a evidência desse paralelismo, é possível porque podemos ter casos de pessoas letradas e não alfabetizadas (indivíduos que, mesmo incapazes de ler e escrever, compreendem os papéis sociais da escrita, distinguem gêneros ou reconhecem as diferenças entre a língua escrita e a oralidade) ou pessoas alfabetizadas e pouco letradas (aqueles que, mesmo dominando o sistema da escrita, pouco vislumbram suas possibilidades de uso).
Em uma sociedade como a nossa, o mais comum é que a alfabetização seja desencadeada por eventos de letramento, tais como ouvir histórias, observar cartazes, conviver com práticas de troca de correspondência, etc. No entanto, é possível que indivíduos com baixo nível de letramento (não raro membros de comunidades analfabetas ou provenientes de meios com reduzidas práticas de leitura e escrita) só tenham a oportunidade de vivenciar tais eventos na ocasião de ingresso na escola, com o início do processo formal de alfabetização.